Fonte: Diário do Grande ABC
Por: Alessandro Soares
Um Brasil profundo, longe dos olhos, das lentes e das antenas, emerge das águas escuras e espelhadas do Rio Negro, aquele que se junta, sem se misturar, com o Rio Solimões para formar o Amazonas. O rio é a via de acesso à região do mapa do Brasil, protegida por serras escarpadas, rios caudalosos e com corredeiras e cachoeiras, cujo contorno tem a forma de uma cabeça e dorso de um cão. Fica no Noroeste do Estado do Amazonas, na fronteira com Venezuela e Colômbia. Lá o fotógrafo Araquém Alcântara e o médico cancerologista Drauzio Varella documentaram povos indígenas, fauna, flora e uma paisagem miraculosamente intocada, com 360º de verde à vista, um rincão amazônico onde preservação da cultura e do meio ambiente funciona.
O resultado da expedição desses bandeirantes às avessas é o livro bilíngüe Cabeça do Cachorro (Terra Brasil, 220 págs., R$ 145), com mais de 140 com fotos de Alcântara e ilustrações de viajantes e naturalistas que lá estiveram entre o século 18 e início do 20.
Na crônica de viagem que resulta destas páginas, a narrativa imagética das fotos dialoga com o texto do doutor Varella, em português e inglês, que faz um apanhado histórico da bacia do Rio Negro, com apenas um deslize, de 256 anos: na página 27, o autor deixou passar um Tratado de Tordesilhas (1494, que dividiu o globo entre Portugal e Espanha, potências ultramarinas) quando se referia a fato posterior ao Tratado de Madrid (1750, que definiu as fronteiras do Brasil à época, semelhantes às atuais).
Alcântara e Varella reportam, como os cronistas-viajantes faziam no século 16, com texto e imagens, o testemunho de um mundo natural ainda não perdido pela ocupação ilegal e devastadora de terras. Os indígenas e seus descendentes que sobreviveram à ação civilizatória e predadora do passado conseguiram a demarcação de terras em 1998, que não compensa as perdas humanas e a violência. Lutam agora por um desenvolvimento sustentável, para não viverem como seus avós, mas integrados ao mundo sem destruir a floresta.
A presença portuguesa na região, que escravizava índios para lavouras, empurrou populações rio acima; no início do século 20, veio o ciclo da borracha e mais exploração. Ao contrário dos bandeirantes, que caçavam índios para escravizá-los, fotógrafo e médico-autor registraram índios e seus descendentes, seu modo de vida, a floresta e os animais, costumes e desafios da região, onde a miséria ainda é visível e o custo de vida altíssimo. A constatação da obra: pais e mães amazônicos da Cabeça do Cachorro sonham para si um pouco de conforto, energia elétrica em casa e computador; para os filhos, escola. Sonhos simples, mas ainda distantes.
Como crônica de viagem, o texto inclui algumas histórias individuais e homogeniza grupos para apresentar uma realidade. Mas há várias realidades embrenhadas na mata, vilas e povoados. A narrativa visual, bela e poética, dialoga com o texto, tanto pelo que tem de sintonia documental como pelo que o conjunto da obra poderia ter sido: um mergulho profundo, que ficou na superfície. Mesmo assim, um registro importante de uma realidade e uma paisagem tão distantes, mas tão brasileiras.
Fonte: Diário Online
Link: http://cultura.dgabc.com.br/default.asp?pt=secao&pg=detalhe&c=4&id=3258048&titulo=Medico+e+fotografo+revelam+um+Brasil+profundo
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